domingo, 11 de julho de 2010

O cangaceiro, a donzela, o jagunço e a cobra

Observados por um desconfiado teiú, um viajante solitário e seu jumento cruzam a aridez do sertão nordestino, rumo ao horizonte. Lá onde a vista alcança, céu e terra se confundem sob o sol escaldante de novembro. só o som ritmado e interminável das quatro ferraduras contra o solo ressecado se faz ouvir, passo após passo.

Nosso viajante é um homem na casa dos cinquenta anos, de estatura mediana, com aparência frágil, de pele enrugada e tostada pelo sol forte. Mas sua constituição física disfarça o grande vigor e energia para as longas jornadas no lombo de seu inseparável amigo cinzento. Se os olhos são as janelas da alma, através dos seus, só se pode ver uma serenidade, aonde não parece caber o mal, é o que me parece. 

Traz consigo pouca coisa. Nas vestes simples destacam-se um gibão e um chapéu de couro para se proteger dos espinhos e galhos secos da caatinga. Uma esteira de palha e uma coberta de lã para os pernoites. No bornal carrega carne seca, tapioca e fumo de corda. No cantil, água fresca do último riacho que atravessou seu caminho. Num saco de linho carrega vários pequenos objetos e uma garrafa misteriosa. Também faz parte da sua bagagem, uma viola afinada que o acompanha nos casos que gosta de contar por onde passa.

Mais algumas léguas adiante, um pequeno povoado se desenha na paisagem. O viajante se detém por um instante, como que avaliando as possibilidades do lugar, se valeria à pena conhecer.

Na placa, na entrada da cidade, se lê “Pequenina”. Não poderiam ter escolhido nome mais apropriado para o povoado. A distância permite divisar a igreja, recém caiada de um branco imaculado, com a torre do sino acima de todas as outras construções do lugar. A rua do pequeno comércio é onde se vê o maior movimento de gente. As casas simples dos moradores compõe um mosaico multicolorido, que faria empalidecer qualquer arco-íris depois da chuva. Alí deve ser a escola e acolá, a prefeitura. A praça e o coreto, as pessoas sem pressa, cuidando de suas vidas, sem muito com o que se preocupar, sem nada a temer. Não há postes, nem fios. Nenhuma estrada importante, nenhum rio navegável e nenhuma ferrovia em léguas de distância. Sem telefone, sem telégrafo, sem energia elétrica. Os pequeninenses estão isolados do mundo, há dias de distância de qualquer vestígio de civilização. Sim, valia à pena conhecer Pequenina.

Exausto e com sede, o jumento desce a ladeira confiante do merecido repouso e água fresca que encontrará na sombra generosa de alguma árvore, lá embaixo.

Todos os raros forasteiros que adentram Pequenina costumam ter uma passagem discreta. Caixeiros viajantes, andarilhos, o homem do correio. São eles os portadores de boas ou más notícias do mundo exterior, tão alheio aos habitantes do lugarejo. O último que passou por alí disse que era bom cada um separar uns cobres e umas garrafas de cachaça para dar ao bando de um tal de Lampião,que se dizia governador do sertão. Mas nunca levavam essas estórias muito a sério, pois jamais esperam por alguém que pudesse causar um desequilíbrio substancial à rotina por eles tão prezada e preservada ao longo de décadas. 

Amarrado o jumento à sombra, nosso viajante se posiciona no meio da praça. Do saco de linho, saca pequenos frascos de água de cheiro, que distribui às mulheres que passam. Às crianças, pequenos e deliciosos cubos de rapadura. Aos homens, miniaturas de garrafas de cahaça de alambique. Todos distribuídos de graça, a quem seus braços pudessem alcançar. A princípio, as pessoas desconfiam de tanta generosidade, mas aos poucos, todos aceitam e aprovam os inesperados agrados.

Nosso viajante passa a alça da viola em volta do pescoço, afina com destreza as doze cordas do instrumento. Uma pequena multidão, levando-se em conta as modestas dimensões demográficas de Pequenina, se aglomera ao redor desse forasteiro. Em verso, ele saúda e se apresenta aos atentos pequeninenses. 

Deixo aqui a narração a cargo de nosso amigo, para retomá-la somente ao final da história.

"Boa tarde, Pequenina!
Bendita comunidade!
Corre solta sua fama,
De grande hospitalidade. 
Berço de homem valente, 
Terra de mulher decente
Da mais pura qualidade.


Eu já vi gente bonita,

Por esse sertão afora. 
Porém sem comparação
Com o que eu vejo agora
De Exu a Juazeiro,
Cariri a Limoeiro,
A beleza é cá que mora.


Sou Custódio Severino, 

Quero me apresentar.
Vi na vida muita coisa
Que hoje posso contar.
Experiente, calejado,
No sertão eu fui criado.
Tenho é casos pra narrar.


O que conto, acreditem,

Nada tem de ficção.
É verdade verdadeira,
Digo com convicção.
Diminuo nem aumento,
O que falo não invento,
Não vem da imaginação."


—Podem se chegar, minha gente. Peço que vosmecês se acomodem em volta para que todos possam escutar o caso que vou contar, em verso e prosa. As crianças na frente, as damas e os cavalheiros ao fundo. Pois bem, vamos começar. Há mais surpresas no final, que ninguém vá embora!”


"O galo canta cedo,
O trabalho é divertido.
E lá tem doce de côco
De deixar queixo doído.
Lá da leite, dá mandioca,
Milho de fazer pipoca,
Na Fazenda Grão Moído.


Lá no alto de Alagoas, 

Muitas léguas de lonjura,
Crianças se divertiam
Num cenário de pintura.
E por toda vizinhança,
A vida passava mansa,
Feito quadro na moldura.


Coronel Sebastião,

Homem rude, porém justo.
Tinha muitos empregados,
O patrimônio era robusto.
Cedo foi arar a roça,
Foi condutor de carroça,
Bem de vida à muito custo.


Mas o seu grande xodó,

Sua riqueza sem igual,
Prometida a engenheiro,
Bom moço da capital
É sua filha Margarida,
Pelos deuses protegida,
Como uma virgem vestal."



Mas tanta prosperidade
Logo desperta cobiça.
Grão Moído é comentada
Até na hora da missa.
Cangaceiros lhe põe alvo,
Ninguém estará a salvo,
Quem viver, peça justiça.


O bando de Barrabás

Invade cedo a fazenda.
Quem resiste é esmagado
 Feito cana na moenda.
Sem respeito à autoridade,
Agem com perversidade,
O medo é fonte de renda.

Em matéria de baderna
O bando é especialista.
Cada um pega o que pode
Até completar sua lista.
Januário, o cangaceiro
Agarra a donzela primeiro.
É sua parte na conquista.


“Atacaste minha casa 

Feito uma ave de rapina.
Não te atrevas coisa ruim
A bulinar minha menina.
Leve o vinho, leve o bode, 
Mas respeite o meu bigode.
A minha ira é assassina!”

 “Minha filha, aguente firme,
Que papai vai te buscar.
E aquele que te leva,
Eu também vou encontrar,
Pode até sumir no mundo,
No buraco mais profundo,
Eu o encontro pra capar!



Coronel, tu és ousado

E eu respeito muito isso.
És altivo na derrota,
Sem jamais ser submisso.
Vou poupar a tua vida,
Mas não deixo Margarida, 
Nem com força de feitiço.


A menina se debate 

Feito uma gata do mato.
Ela é levada a força,
Porém sem maior maltrato.
Januário toma soco,
Leva tapa e não dá troco,
Lhe perdoa o desacato. 


O bando vai satisfeito

Com o fruto da pilhagem,
O rastro que ele deixa
É a mais pura imagem:
De uma violência insana
De uma farra desumana,
Para obter vantagem


Custódio faz uma breve pausa para tomara água. As pessoas se se comodam melhor para acompanhar sua narrativa. Alguns se sentam na grama, as mulheres abrem as sombrinhas, o pipoqueiro se apressa em atender os fregueses. as crianças deixam de brincar para prestar atenção.  De onde viera Januário, o cangaceiro que raptou a indefesa donzela? Os próximos versos irão lhes revelar.


O menino Januário
Vivia só pra brincar.
Mas o seu mundo caiu
Naquela discussão de bar.
Foi um crime sem motivo,
Ferida sem curativo
Feito por um militar.

O assassino de seu pai
Nunca chegou a ser preso. 
A injustiça que manteve
Todo o seu ódio aceso.
Ver um cabra impunemente,
Depois de covardemente,
Matar seu pai indefeso.

Sua vingança não aguarda
Nem virar um homem feito
Tira a vida do soldado
Com uma bala no peito
Com treze anos de idade,
Sabia fazer maldade,
E sabia fazer direito!

Era agora fugitivo,
Sem casa pra retornar.
Sua mãe por ele reza,
Sem poder lhe ajudar.
Admirados do seu feito,
Homens de pouco respeito,
Vieram pra lhe buscar.

Barrabás o acolheu
Debaixo de sua asa.
Dele agora é protetor,
O levou pra sua casa.
O amparou como a um filho,
Ensinou puxar gatilho,
Marcar inimigo à brasa.

Assim cresceu Januário,
Rebelde por natureza.
Bom na faca, bom de briga,
Firme como fortaleza.
Essa era a sua sina,
Mas uma cintura fina
Sempre foi sua fraqueza.